Preencha os campos abaixo para submeter seu pedido de música:
Adriano Espíndola Cavalheiro, de Uberaba (MG)*
Imagem: Reprodução
Neste ano de 2024, mais uma vez decidi retornar à vida acadêmica, cursando agora uma nova Pós-Graduação. A última vez em que me aprofundei nos estudos acadêmicos foi para estudar e desenvolver estratégias de enfrentamento nos processos que patrocino como advogado trabalhista, aos efeitos do que foi denominado “Reforma Trabalhista” – talvez um dos maiores ataques contra o Direito do Trabalho, que, em sua maior parte, foi ratificado pelo Poder Judiciário. Essa decisão trouxe bons resultados aos meus clientes.
Agora, nos novos estudos, deparei-me com uma aula sobre direitos humanos, que apresenta uma visão deste que parece desvinculada da realidade do mundo. É apresentada uma visão asséptica, como se vivêssemos em um ideal desprovido de diferenças sociais. Eis o que tentaram ensinar na aula: “Direitos humanos consistem em um conjunto de faculdades e instituições que visam materializar algumas das principais demandas por reconhecimento da dignidade de todos os seres humanos. Essas demandas surgem inicialmente como princípios morais, mas são gradativamente incorporadas ao direito positivo. Devido a essa natureza dupla, os direitos humanos podem ser entendidos tanto como ‘direitos legais’, quando inscritos em normas de uma ordem jurídica nacional ou internacional, quanto como ‘direitos morais’.”
Um conceito que destaca a suposta dualidade dos direitos humanos, os quais seriam simultaneamente princípios morais universais e direitos protegidos legalmente, inerentes a cada indivíduo por sua condição humana, independentemente de nacionalidade, local de residência, sexo, origem nacional ou étnica, cor, religião, língua ou qualquer outra condição, inclusive econômica. Os direitos humanos abrangem direitos civis e políticos, como o direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal, além de direitos econômicos, sociais e culturais, como o direito ao trabalho, à educação e à saúde. Além disso, compete ao sistema jurídico, por meio dos entes estatais, assegurar o respeito, a proteção e a efetivação dos direitos humanos, garantindo que todos os indivíduos possam exercer plenamente seus direitos e liberdades.
Mas, como já alertava, em 1991, a banda Biquini Cavadão na canção “Zé Ninguém”, “aqui embaixo as leis são diferentes”. Por exemplo, o direito ao trabalho, essencial para a sobrevivência e dignidade do indivíduo, é vivenciado de forma muito distinta entre as classes sociais. Para a classe trabalhadora, esse direito frequentemente se traduz em empregos precários, com remuneração baixa, pouca segurança no trabalho e condições muitas vezes degradantes, além da sonegação de direitos trabalhistas básicos. Em contraste, para os membros da classe dominante, o direito ao trabalho pode significar a liberdade de escolher carreiras gratificantes, com salários altos, estabilidade e condições de trabalho confortáveis, possibilitadas por qualificações adquiridas nas melhores escolas e universidades.
O mesmo se aplica ao direito à educação. Embora formalmente todos tenham direito à educação, na prática, o acesso a uma educação de qualidade é frequentemente determinado pelo status socioeconômico da família. Crianças de famílias abastadas tendem a frequentar escolas privadas bem equipadas, enquanto crianças de famílias de baixa renda muitas vezes se veem limitadas a escolas públicas subfinanciadas e superlotadas, o que pode restringir significativamente suas oportunidades futuras.
A mesma situação ocorre em relação ao direito à saúde. Apesar de os direitos humanos proclamarem o direito à saúde para todos, o acesso a serviços de saúde de qualidade e tratamentos avançados é quase sempre exclusivo àqueles que podem arcar com seguros de saúde privados ou tratamentos particulares. A classe trabalhadora enfrenta longas filas de espera, escassez de médicos e hospitais em suas comunidades e incapacidade de pagar por medicamentos essenciais.
E, inevitavelmente, ao discutir direitos humanos, as abordagens policiais e a aplicação da lei também evidenciam discrepâncias nos direitos humanos com base na origem social. Indivíduos ricos ou da classe média alta frequentemente recebem um tratamento mais leniente por parte da polícia e do sistema de justiça criminal. Eles têm mais recursos para contratar advogados competentes, podem pagar fianças e têm maior probabilidade de receber sentenças mais leves ou de serem absolvidos. Além disso, a mídia e a opinião pública muitas vezes os retratam de maneira mais favorável. Em contraste, indivíduos de comunidades marginalizadas e/ou negros, especialmente os que vivem nas periferias, são frequentemente alvos de abordagens policiais agressivas e discriminatórias. Eles correm um risco maior de serem parados, revistados, detidos e até mortos pela polícia. O tratamento desigual é exacerbado pela falta de recursos para uma defesa legal adequada, o que pode resultar em condenações injustas e penas mais severas. As greves trabalhistas, organizadas pela classe trabalhadora em busca de melhores condições de trabalho e salários justos, são frequentemente reprimidas violentamente pelas forças policiais, mostrando como o direito de reunião e protesto é secundarizado em detrimento do direito de propriedade da burguesia. Essas práticas repressivas não são anomalias, mas sim manifestações da função do Estado capitalista em preservar a ordem social que beneficia a classe dominante. A polícia, como parte do aparato estatal, atua para proteger a propriedade privada e a ordem capitalista, muitas vezes à custa da supressão dos direitos humanos daqueles que desafiam essa ordem.
Portanto, embora os direitos humanos, conforme articulados no discurso acadêmico, sejam apresentados como uma resposta jurídica e moral às demandas emergentes da sociedade moderna, uma análise crítica revela que esses direitos, embora busquem proteger a dignidade e a liberdade, frequentemente o fazem dentro dos limites impostos pelo capitalismo. O sistema capitalista, com sua busca incessante por mais-valia, perpetua a desigualdade e a injustiça social, apropriando-se do valor gerado pelo trabalho operário e consolidando o poder nas mãos de uma classe dominante. É nessa busca desenfreada por lucro que os proprietários do capital atacam ou permitem ataques aos chamados direitos humanos.
Não se pode ignorar que a visão materialista da história, defendida por nós marxistas, determina que são as condições materiais, as relações econômicas e sociais, que fundamentam e influenciam a consciência e as ações humanas. Por exemplo, a Revolução Industrial, ao introduzir a mecanização na produção, não apenas transformou o processo de trabalho, mas também reconfigurou as relações sociais e a própria concepção do indivíduo sobre trabalho e tempo. A emergência de uma classe trabalhadora urbana e a concentração de capital nas mãos dos proprietários das fábricas ilustram como mudanças materiais podem moldar a consciência social e originar novas ideologias e movimentos políticos. Assim, a concepção materialista da história considera a produção e troca de bens como a base da sociedade. As diferentes formas de produção ao longo da história criaram distintas classes sociais, e as lutas entre essas classes são o motor das mudanças sociais. O capitalismo é um sistema baseado na exploração do trabalho, que gera mais-valia apropriada pelos capitalistas, perpetuando a desigualdade e a injustiça social. Essa dinâmica econômica não é apenas uma característica do sistema, mas a essência que define as relações entre as classes. Foi assim que Marx, compreendendo o significado da mais-valia – o valor extra gerado pelo trabalho do operário e apropriado pelo capitalista – explicou o funcionamento do capitalismo e sua injustiça. A análise materialista da história também desmascara a noção de que as instituições sociais, incluindo os chamados “direitos humanos”, são naturais ou eternas, mostrando que são, na verdade, construções humanas que refletem as relações de produção e poder em uma determinada época.
Portanto, não é adequado concluir que a divisão entre os detentores do capital, isto é, entre proprietários dos meios de produção e aqueles que vivem do que recebem em decorrência do seu trabalho, possa ser resolvida somente por meio de reajustes salariais, reformas nos sistemas de saúde educacional e de moradia, em aprimoramentos na polícia e nos sistema judiciário e carcerário. É essencial entender que, embora a luta por direitos humanos seja uma batalha pela dignidade, não basta apenas lutar pela preservação desses direitos. Na verdade, a luta por direitos humanos, por confrontar a exploração e a opressão, deve ser travada de forma inseparável da luta contra a estrutura de poder que perpetua a exploração. Uma batalha que compreenda a proteção da dignidade humana, por meio do respeito aos direitos humanos, como parte da luta contra o sistema capitalista e suas injustiças intrínsecas.
Ignorar essa perspectiva, isto é, não correlacionar a luta por direitos humanos como uma parte importante da luta contra o capitalismo, além de desconsiderar a atual situação deste sistema, na qual a manutenção da taxa de lucros depende do contínuo aumento da opressão e exploração, pode tornar a luta por direitos humanos um elemento de estabilização do próprio sistema em crise, uma vez que apazigua as contratações do mesmo, levando a novos ciclos de ataque e diminuição de direitos.
É bom que fique evidente que não se está aqui defendendo que não se trave a luta por direitos humanos e contra quaisquer opressões ou, ainda, por pautas econômicas e salariais, o que se defendeu é que tais lutas devem ser compreendidas em uma dimensão superior à atualmente adotada pela maioria dos ativistas de direitos humanos e organizações de esquerda, que sejam encaradas e organizadas fazendo uma ponte entre elas e a necessidade de lutar contra o sistema responsável pelos ataques aos direitos, o capitalismo.
*Adriano Espíndola Cavalheiro é advogado. Texto publicado no jornal “Opinião Socialista”.