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Por Almir Cezar Filho*
Fotos: Reproduções
Neste mês, a cidade de Niterói celebra seus 450 anos de fundação, uma marca significativa que, infelizmente, está sendo obscurecida por uma realidade contrastante entre as festividades promovidas pela Prefeitura e as necessidades urgentes da população trabalhadora e de baixa renda da cidade.
A Prefeitura de Niterói está organizando uma série de festas e inaugurações de obras de revitalização urbana, especialmente no Centro da cidade, como parte das celebrações. No entanto, uma análise mais detalhada revela que essas iniciativas têm um viés eleitoreiro (a menos de 1 ano das eleições municipais de 2024), beneficiando empresas imobiliárias e empreiteiras.
A revitalização proposta, mais uma vez, parte de uma premissa equivocada relacionada ao Caminho Niemeyer, um conjunto de prédios projetados pelo arquiteto para abrigar espaços culturais e construídos pela Prefeitura nos anos 2000. Desde a década de 1990, quando esse projeto foi concebido durante a administração do prefeito Jorge Roberto Silveira, enfrentou desafios significativos. Além dos altos custos de construção e operação, o Caminho Niemeyer mostrou-se problemático para integrar-se ao restante do Centro da cidade, parte dele deteriorado e outra parte repleta de vazios, priorizando mais a conexão turística com o terminal de barcas e a cidade do Rio de Janeiro.
A falta de integração, somada à visível decadência do Centro, levou a uma tentativa tardia de “revitalizar a revitalização” em 2006, com o programa “Viva Centro”. No entanto, esse esforço teve impactos limitados e foi, em grande parte, esquecido após mudanças na administração municipal subsequente e outros interesses. Um dos poucos resultados foi um hipermercado, inadequado ao contexto da área, que funcionou por menos tempo do que ficou fechado, sendo demolido este ano para dar lugar a lançamentos imobiliários.
O projeto Masterplan, lançado no ano seguinte, visava revitalizar o Centro de Niterói e torná-lo um destino turístico nacional. No entanto, suas ações foram direcionadas mais para a construção de torres imobiliárias (que agora começam a ser construídas) do que para a integração efetiva com o Caminho Niemeyer.
A mais recente iniciativa, o “Niterói 450”, busca integrar o Caminho Niemeyer ao Centro por meio de uma Parceria Público-Privada (PPP). O projeto prevê a urbanização de uma área de 65 mil metros quadrados, anteriormente usada como estacionamento, com planos para a construção de até oito torres residenciais. Embora a proposta prometa revitalização, é fundamental questionar a eficácia real dessa abordagem: a quem vão estar destinadas estas novas residências? Vão atender à carência de moradia da população trabalhadora e pobre ou vão privilegiar a classe média alta e seus negócios, além dos empresários da construção civil?
A história do desenvolvimento urbano de Niterói, como o de muitas outras cidades brasileiras, evidencia um ciclo repetitivo de revitalizações urbanas frequentemente abandonadas ou desviadas de seus objetivos originais. A metáfora do “tecido de Penélope”, cujo mito grego destaca esse padrão de mudanças constantes no espaço urbano, onde intervenções são iniciadas, suspensas e revisadas antes mesmo da conclusão, destaca a priorização da acumulação de capital em detrimento da inclusão social ou dos objetivos arquitetônicos anunciados.
Os recentes esforços de revitalização liderados pelo atual prefeito Axel Grael (PDT) trazem à tona reflexões sobre o planejamento urbano e seus impactos nas cidades. O Caminho Niemeyer e essa área do Centro, em um passado não muito distante, também foram vítimas de um ambicioso empreendimento público, que buscava transformar a Praia Grande e resultou em seu desaparecimento.
O projeto, que completou meio século no ano passado (2022), visava, por meio de um aterro, criar um gigantesco parque público na orla do Centro e parte da Zona Sul, com uma ligação viária expressa e áreas de lazer, que seria a contraparte ao Parque do Flamengo no Rio de Janeiro. No entanto, após o aterramento, no auge do Milagre Econômico e da Ditadura Militar, houve a suspensão da conclusão, tão ou mais antidemocrática que a decisão de sua construção que resultou na destruição da paisagem natural da cidade. A região aterrada resultante passou décadas negligenciada e desolada, com intervenções pontuais, contrastando com as grandiosas expectativas de construção de teatros, parques e museus que ficaram na promessa e que o Caminho Niemeyer supostamente deveria reparar parcialmente.
E ainda, em virtude das décadas de esvaziamento econômico da cidade, as áreas de aterro do Aterro da Praia Grande, cuja construção coincidiu com o início do esvaziamento econômico, seguiram por anos desocupadas ou subocupadas, mesmo atualmente, servindo meramente como estacionamentos improvisados e formando uma grande área de vazio urbano.
Contraditoriamente, o Centro da cidade, carente de equipamentos culturais e áreas de lazer, motivo alegado para a construção do Caminho, viu, com a autorização da Prefeitura, o fechamento de dezenas de cinemas de rua, o desaparecimento de áreas livres usadas como espaço de lazer e a falta de desenvolvimento de espaços culturais populares no aproveitamento de edifícios históricos fechados ou subutilizados.
Com a recente reinauguração do Mercado Municipal de Niterói, fechado por mais de 40 anos e por décadas subutilizado para outros fins muito menos nobres, abre-se a possibilidade de discutir a requalificação de grandiosos edifícios públicos, muito fechados e passando inclusive por processo de deterioração. Soa estranho isso acontecer em um município que gasta fortunas com aluguéis de imóveis para suas repartições, almeja tornar-se destaque nacional com turismo e indústria cultural e durante anos gastou milhões levantando prédios novos para o complexo cultural do Caminho Niemeyer, abandonando prédios históricos.
E o que dizer da “revitalização do centro” em relação à construção de moradias populares para milhares de pessoas que gastam horas e horas de seu dia com longos deslocamentos entre casa e local de trabalho? E da criação de espaços de lazer para esta mesma população trabalhadora e pobre, expandindo as áreas verdes da cidade, em condições ambientais adequadas?
Os prédios institucionais históricos, se devidamente recuperados, mesmo para novos fins institucionais ou culturais/entretenimento, poderiam contribuir para a retomada econômica da cidade, especialmente após muitos meses de pandemia de Covid-19 que obrigaram a economia a passar por recorrentes suspensões das atividades não essenciais.
A atual proposta de integrar o Caminho Niemeyer ao Centro, por meio da abertura de ruas e ocupação das quadras vazias, hoje ocupadas por estacionamentos pagos improvisados, embora possa parecer promissora, deve ser analisada criticamente. A inclusão de uma área verde e a ocupação de uma área deserta para a construção de residências deve garantir que essas medidas realmente beneficiem a população local, evitando a expulsão dos mais pobres e a exclusão econômica.
As revitalizações urbanas, como o Caminho Niemeyer, geralmente resultam em gentrificação e elitização, beneficiando a indústria da construção civil e o setor imobiliário. A acumulação de capital é a faceta central nas decisões de revitalização urbana, e é crucial compreender que essas ações entram em conflito com os objetivos declarados de melhorar a qualidade de vida da população local. Além do calçamento colorido cênico, dos canteiros paisagísticos e da mudança de pontos de ônibus, que, na verdade, facilitam a atratividade para a venda de apartamentos de alto padrão na região e garantem fluidez para o transporte rodoviário individual, são necessárias ações concretas voltadas para a parcela mais carente da população.
Novamente, omite-se o planejamento de todos os serviços públicos que devem existir na cidade, especialmente limpeza, iluminação, segurança e ordem pública, não apenas nas novas quadras, mas no conjunto do Centro, sem falar no conjunto do município. Associado à revitalização, ouve-se mais uma vez a narrativa de que os camelôs e moradores de rua “matam” o Centro e precisam ser combatidos, além do discurso aporofóbico de que atrapalham a movimentação do cidadão, afetam o comércio legal, geram desemprego, incomodam o turista, “enfeiam” a cidade e trazem criminalidade. Esse discurso esquece as pessoas que vivem e trabalham naquele espaço, sem integrar ao plano as fundamentais ações de assistência social, habitação social e fomento à economia popular e solidária.
Diante dos desafios enfrentados por Niterói, é urgente discutir democraticamente o uso do espaço urbano e o perfil das atividades econômicas. Isto só pode ser feito com a instalação de um conselho popular com poder decisório sobre as revitalizações, integrado estritamente por meio democráticos, com a participação de estudiosos e representantes das entidades dos trabalhadores usuários dos equipamentos urbanos e dos funcionários das empresas e instituições envolvidas.
Somente por meio de uma abordagem que priorize as necessidades da população em detrimento dos interesses políticos e empresariais, Niterói poderá alcançar uma verdadeira revitalização urbana que beneficie a todos, mas especialmente à classe trabalhadora e à população de baixa renda. Este é o caminho para construir uma cidade mais justa, equitativa e sustentável para os próximos 450 anos.
*Almir Cezar Filho – Economista, colunista da Rádio Censura Livre e apresentador do programa Economia É Fácil [na WRCL] e editor da ANotA – Agência de Notícias Alternativas. Texto para a Agência de Notícias Alternativas (ANOTA)