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Por Wendell Setubal*/
Foto: Reprodução/Internet/
1964
MEU irmão tinha 15 anos. Eu, 13. Ele jogava futebol de areia, no Dínamo, do Tião Macalé. Tião era negro e comunista. Ele soava o gongo, nos anos 1950, do programa de calouros do Ari Barroso. Em 1964, estava na TV Rio, esperando que surgisse a Globo. Ficou famoso fazendo um quadro com uma negra alta; ele era baixinho e só este contraste já fazia o público rir. Não conseguia seduzi-la e exclamava: “Ó que crioula difícil.” Como? Não, na época não havia identitaristas.
QUANDO o Tião ia colocar a rede na baliza, eu o ajudava. Naquele dia vi papel picado jogado dos prédios da avenida Atlântica. Perguntei ao Tião o que era aquilo. Ele xingou: “Filhos da puta. Os militares tiraram João Goulart. Os ricos, que moram na Atlântica, estão comemorando.”
PARTE da classe média também. Meu pai era lacerdista e Carlos Lacerda saía como o grande vencedor civil do Golpe militar. A ditadura militar durou 21 anos.
1972
EM 1972, entrei no curso de Ciências Sociais da UFF e no PCB, chamado pelo pessoal da esquerda de Partidão ou “pessoal da reforma”. Um dos militantes mandou que eu tomasse cuidado com o “Cérebro” daquela esquerda, um cara que falava pouco. Hoje, somos amigos e João, o “Cérebro”, é do grupo Tortura Nunca Mais.
NAQUELE ano, no bairro de Quintino, militares do Exército invadiram uma vila. Em uma das casas, mataram Maria Regina, Ligia Maria (grávida) e Antônio Marcos. Os mortos eram da Vanguarda Armada Revolucionária Palmares, Var-Palmares, liderada pelo ex-capitão Carlos Lamarca. Se houvesse sobrevivido, Marcos seria tio da minha filha, meu cunhado.
1981
DIVERGÊNCIAS me levaram a sair do PCB e ir para a fábrica, com um curso de soldador, feito em São Paulo. Fui para Santo Amaro e éramos uns 30 no máximo. Uma organização trotsquista, incentivada por Mário Pedrosa, composta por ex-militaristas, como eram chamados os que optaram pela luta armada. Quando minha filha nasceu, voltei para o Rio e fui trabalhar nos estaleiros. A minha organização, Convergência Socialista, foi uma das lideranças da greve de 1979, com o Movimento de Emancipação do Proletariado (MEP), dissidência da Polop, e a Ala Vermelha, dissidência do PCdoB. Quem falava pela Convergência na Assembleia era uma moça de uns 21 anos. Difícil dimensionar o impacto na peãozada, o respeito e a admiração que os grevistas tinham por uma garota chamando para a luta. Fizemos uma chapa e perdemos da chapa que juntou pelegos e estalinistas do MR8. Todos os ativistas da oposição demitidos e seus nomes entregues nas fábricas, pedindo que não fossem admitidos.
NÓS éramos 4 em um quarto, em Quintino, que tinha um chuveiro só com água fria e um vaso, móvel nenhum. Eu vendia livro do Círculo do Livro e Fulano (não lembro o nome) estudava no Senai e o pai ajudava. Quanto ao casal, ele fazia o Senai e ela a comida porque na GE só aprendeu a fazer lâmpada. De segunda a sexta: de manhã, café, pão e manteiga. Almoço: feijão, arroz e ovo. Na janta, feijão, arroz e ovo. Fim de semana, passar na casa dos pais para ver carne e outras coisas. O quarto ficava em cima de um morro, quase em frente à Igreja de São Jorge.
QUINTINO passou a ser conhecido pela igreja e por ser o bairro onde nasceu Zico, um dos maiores jogadores do Brasil, o maior ídolo do Flamengo. Rubem Fonseca, vascaíno, em um de seus livros criou um personagem que teve morte horrível. Seu nome: Arthur Coimbra. Nome do Zico.
2022
A ORDEM do Dia do Exército, no dia 31 de março, afirmava que o “Movimento” de 1964 trouxe paz, desenvolvimento, amadurecimento da população, enfim, mentiu descaradamente, similar ao mau elemento do Planalto.
Como estão hoje as pessoas citadas?
Militares da Chacina de Quintino – Paradeiro desconhecido. A CIA recomendava recrutar para tortura e assassinato as personalidades psicopatas. O mau aluno é o melhor.
Fulano – Não sei.
E. – Trabalhou como torneiro mecânico e depois formou-se em Direito.
T. – Moraram juntos (T. e E.). T. é casada com uma mulher e é resoluta na defesa do casamento gay.
Zico – Mora no Rio, não mais em Quintino, mas na Barra. Ídolo dos japoneses.
QUANTO a mim, escrevo para evidenciar que a barbárie no Brasil NÃO começa com Bolsonaro e não vai acabar quando ele for derrotado. Definitivamente, eleições derrotam o subproduto da barbárie, mas ela mesma vai continuar, enquanto houver capitalismo.
*Wendell Setubal – Revisor de texto com Pós-Graduação pela PUC-MG. Publicado originalmente na página Fato e Ideias no Facebook.